"Conto Popular é Literatura ?" - Texto por Farrel Kautely


Provavelmente contamos histórias desde que nossa escala evolutiva permitiu o surgimento da comunicação verbal.

Não é absurdo presumir que, assim como o uso que fazíamos das pinturas rupestres, não demoramos a utilizar a habilidade da fala para construir uma memória coletiva, mantendo nossos feitos e conquistas vivos nas mentes das novas gerações.

O ato de contar histórias, no entanto, nunca se limitou a conservar a memória. Narrativas são consideravelmente eficazes quando utilizadas num processo de aprendizagem, e o conteúdo a ser aprendido/ensinado pode ser de qualquer natureza.

Histórias de um amor proibido entre o Sol e a Lua podem ter o intuito de explicar o porquê de um ser visto somente ao dia e outro comumente somente à noite, por exemplo, enquanto que histórias sobre mulas sem cabeça buscam instruir moças a não se engraçarem para o lado de padres.

São esses os contos populares, histórias narradas de pais para filhos que constroem a identidade de um povo. Não possuem uma autoria definida, é como se todo o povo fosse o autor da narrativa.

É o que diz Michele Simonsen (1987), em seu livro O Conto Popular: “no sentido estrito da palavra, um conto popular é um conto que se diz e se transmite oralmente”.

Simonsen também fala em seu livro sobre o esforço para distinguir o conto popular de outros gêneros narrativos populares de acordo com suas características temáticas, estruturais, e etc., classificando as narrativas como mitos, lendas e outros.

Nas classificações levantadas pela autora de acordo com a cultura europeia, o conto em si se distingue da lenda, por exemplo, por se tratar de uma narrativa ficcional cuja função social se limita ao divertimento, enquanto que a história contida na lenda é tida como verídica e teria a função de transmitir uma lição moral.

Porém, de acordo com a própria Simonsen, há dificuldades consideráveis em classificar os diferentes gêneros narrativos populares, o que acontece devido à heterogeneidade dos critérios.

Afinal, um conto pode, ao mesmo tempo em que diverte, transmitir uma mensagem, uma moral.

A bem da verdade, a necessidade de classificar os gêneros narrativos populares não parece ser mais que uma das facetas da tara humana por catalogar tudo que lhe surge pela frente, e esse gosto pode ser bem inconveniente, às vezes, quando acontece de mais confundir que esclarecer. Afinal, ainda de acordo com Simonsen, “a palavra conto (...) deriva de contar”, e penso que isso poderia bastar.

Mas não basta. Nunca basta. Sempre podemos criar divisões e subdivisões. O que por si só não é um problema, desde que nunca nos esqueçamos de que é um conto por estar sendo contado.

Mas não apenas no quesito gênero a narrativa popular encontra dificuldades em ser classificada. Ainda nos resta a indagação máxima: é literatura ou não é?

Pobres almas, as que buscam fornecer com exatidão uma resposta para esse questionamento. Soa uma tarefa tão improvável de ser executada quanto é para os biólogos definirem o que é vida ou para jair bolsonaro definir o que é articulação.

Os critérios para definir Literatura podem variar de acordo com quem busca definir, e sempre encontrarão discordância em outros que tomam para si a mesma tarefa.

Acerca dos contos populares, poderia ser dito que um conto que circula apenas por meios orais passa a ser Literatura quando gravado em papel?

Bem, poderia. Mas todos iriam concordar que é o suficiente?

Alguns podem dizer que para algo ser considerado Literatura tem de passar por um processo de editoração, que envolve etapas como diagramação, revisão, impressão...

Outros questionariam, trazendo à tona poemas que nunca foram publicados em livro e, mesmo por isso, não são considerados textos não literários, como o poema “Lira Itabirana”, de Carlos Drummond de Andrade, cujos versos nunca foram publicados em um livro (ao menos não pelo poeta que o compôs), e sim num jornal em 1984.

Ser publicado em um jornal basta para que um texto seja considerado uma obra literária?

Como se vê, nada é categórico. Parece haver mais perguntas que respostas e, quanto mais nos demoramos na discussão sobre o que poderíamos chamar de Literatura de Schrödinger (ao mesmo tempo em que é, não é), mais ficamos divididos e indispostos a continuar essa cavalgada pelo vale das indagações.





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